A História mostra os próximos capítulos de Brexit & Trump

Hermano Freitas
11 min readNov 12, 2016

Tobias Stone

La Peste di Firenze

Parece que estamos entrando em outra dessas temporadas estúpidas que seres humanos impõem a si próprios em intervalos bem regulares. Estou esboçando aqui opiniões com base em informações, elas podem se revelar certas, ou podem se mostrar erradas. A intenção é apenas provocar e integrar um diálogo mais amplo.

Minha formação é a Arqueologia, bem como também História e Antropologia. Isso me leva a olhar para grandes padrões históricos. Minha teoria é que a perspectiva histórica da maioria das pessoas é limitada à experiência transmitida pelos seus pais e avós, portanto 50-100 anos. Para ir além disso você tem que ler, estudar e aprender a desconstruir a propaganda que é inevitável em toda a narrativa histórica. Em poucas palavras, na universidade eu teria um trabalho reprovado se não comparasse, pelo menos dois, se não três, pontos de vista opostos sobre um mesmo tema. Ter uma narrativa de fatos como evangelho não desqualifica todo o método de análise comparativa de pesquisa que constitui o núcleo da academia britânica. (Eu não posso falar por outros sistemas, mas eles não são definitivamente todos desta forma).

Então, em perspectiva, nós, seres humanos, temos o hábito de atravessar fases de destruição em massa, geralmente auto-impostas, até certo ponto ou outro. Esta lista acessível mostra todas as guerras ao longo das eras. As guerras são, na verdade, norma para os seres humanos, mas de vez em quando algo maior acontece. Tenho interesse na Peste Negra, que devastou a Europa. A abertura do Decamerão, de Boccaccio, descreve Florença dominada pela Peste. É algo além da imaginação como a batalha do Somme, Hiroshima, ou o Holocausto. Quer dizer, você literalmente não pode se colocar lá e imaginar como era. Para quem estava no meio da Peste ela deve ter parecido o fim do mundo.

Mas uma característica definidora dos humanos é a sua capacidade de resistência. Para nós, agora parece óbvio a sobrevivência à praga, mas para as pessoas daquele momento deveria ter parecido incrível que a sociedade continuaria depois. Na verdade, muitos reputam os efeitos da Peste Negra como de um impacto positivo a longo prazo. Bem resumido aqui: "Ao infectar pessoas frágeis de todas as idades, e matá-las às centenas de milhares dentro de um período muito curto de tempo, a Peste Negra pode ter representado uma força da seleção natural e removido indivíduos mais débeis em uma escala muito ampla na Europa", ...Além disso, a Peste Negra alterou significativamente a estrutura social de algumas regiões europeias. O trágico despovoamento gerou escassez de trabalhadores. Esta escassez fez com que salários subissem. O preço dos produtos caiu também. Consequentemente, os padrões de vida se elevaram. Por exemplo, as pessoas passaram a consumir mais alimentos de qualidade superior. "

Mas para as pessoas que viveram na época, como nas Guerras Mundiais, na fome Soviética, no Holocausto, deve ter parecido inconcebível que os seres humanos poderiam se reerguer depois daquilo. O colapso do Império Romano, a Peste Negra, Inquisição Espanhola, Guerra dos Trinta Anos, a Guerra das Rosas, a Guerra Civil inglesa... a lista é longa. Foram eventos de destruição em massa a partir dos quais a humanidade se recuperou e seguiu em frente, muitas vezes em melhor condição.

Em épocas efêmeras as pessoas pensam que as coisas estão bem, então elas rapidamente entram em uma espiral fora de controle até que se tornam imparáveis e passamos a causar a destruição em massa de nós mesmos. Para as pessoas que vivem em meio a isso é duro de ver acontecendo e difícil de entender. Para os historiadores mais tarde, tudo faz sentido e nós vemos claramente como uma coisa levou a outra. Durante o Centenário da Batalha do Somme, fiquei impressionado que tenha sido resultado direto do assassinato de um arquiduque austríaco na Bósnia. Duvido muito que alguém naquele momento tenha pensado que a morte de um membro da realeza europeia conduziria à morte de 17 milhões de pessoas.

Meu argumento é que isto é um ciclo. Acontece de novo e de novo, mas como a maioria das pessoas só vê a perspectiva histórica de 50-100 anos elas não percebem que está acontecendo novamente. Enquanto se desenrolavam os eventos que levaram à Primeira Guerra Mundial havia algumas mentes brilhantes que começaram a alertar que algo importante estava errado, que a sucessão de traições em toda a Europa poderia levar a uma guerra, mas foram rechaçadas como histéricas, loucas, ou tolas, como sempre acontece, e como as pessoas que se preocupam com Putin, Brexit, e Trump são tomadas agora.

E então, depois da guerra que acabaria com todas as guerras, nós partimos para outra guerra. Mais uma vez, para um Historiador era bastante previsível. Levar as pessoas a sentirem que perderam o controle de seu país e de seu destino, a procurarem bodes expiatórios, um líder carismático que capta o sentimento popular e escolhe o bode expiatório. Ele fala com uma retórica que não permite nenhuma nuance e martela raiva e ódio. Logo as massas começam a agir como uma coisa só, sem qualquer lógica por trás de suas ações, e o todo se torna irreprimível.

Foi assim com Hitler, mas também com Mussolini, Stalin, Putin, Mugabe, e muitos mais. Mugabe é um bom exemplo disso. Ele direcionou a ira nacional contra a minoria branca que era dona das terras (e que, por acaso, sabia como cultivá-las), e as confiscou para redistribuí-las ao povo, em uma grande jogada populista. No final, a economia e a agricultura se deterioraram e o povo acabou de posse da terra, mas morrendo de fome. Veja também as fomes provocadas pela União Soviética, as criadas pelos comunistas chineses no último século, em que de 20 a 40 milhões de pessoas morreram. Parece inconcebível que as pessoas pudessem criar uma situação em que dezenas de milhões de pessoas morreriam por nada, mas nós fazemos sempre de novo.

No entanto naquele momento as pessoas não percebem que estão embarcando em um caminho que levará a um período de destruição. Elas acham que aquilo está certo, elas têm o incentivo dos gritos de multidões enfurecidas, quem critica é ridicularizado. Este ciclo que vimos, por exemplo, desde o Tratado de Versalhes até a ascensão de Hitler e a Segunda Guerra Mundial parece estar acontecendo novamente. Mas, como antes, a maioria das pessoas não consegue vê-lo porque:

1. Elas só estão olhando para o presente, não para o passado ou o futuro.

2. Elas prestam atenção apenas para o que há em torno delas, não em como os eventos estão conectados globalmente.

3. A maioria das pessoas não lê, pensa, questiona ou ouve pontos de vista que as contraria.

Trump está fazendo isso na América. Aqueles de nós com alguma perspectiva da História pode ver isso acontecendo. Leia este ensaio longo, brilhante, na New York magazine para entender como Platão descreveu tudo isso, e está acontecendo exatamente como ele previu. Trump diz que vai tornar a América Grande mais uma vez, quando, na verdade, os Estados Unidos ainda são de fato muito grandes, segundo basicamente quase todas as estatísticas. Ele usa a paixão, a raiva e a retórica da mesma maneira que todos os seus antecessores fizeram - como um narcisista carismático que busca alimento na multidão para se tornar cada vez mais forte, criando um culto em torno de si. Você pode culpar a sociedade, os políticos, os meios de comunicação, pelo fato de a América ter chegado ao ponto que está, pronta para Trump, mas a perspectiva histórica mostra que a História geralmente se desenrola da mesma maneira toda vez que alguém como ele se torna o chefe.

Em um estágio mais avançado, olhando um pouco mais em perspectiva, a Rússia é uma ditadura com um líder carismático usando medo e paixão para ensejar um culto em torno dele mesmo. A Turquia está nessa também, como a Hungria, a Polônia e a Eslováquia estão nesta toada e em toda a Europa mais Trumps e Putins estão esperando sua vez, na verdade tendo Putin como apoio, à espera que a maré popular vá ao seu encontro.

Deveríamos nos perguntar a nós mesmos como será nosso Atentado de Sarajevo. Como é que um evento aparentemente pequeno provocará um outro período de destruição em massa. Vemos Brexit, Trump e Putin isoladamente. O mundo não funciona dessa forma - todas as coisas estão conectadas e afetam umas às outras. Eu tenho amigos pró-Brexit que dizem 'oh, você vai culpar o Brexit por isso também??’ Mas eles não percebem que, na verdade, sim, os historiadores traçarão linhas retas entre eventos aparentemente não relacionados na direção de grandes mudanças políticas e sociais como o Brexit.

O Brexit - um grupo de pessoas com raiva que vencem uma luta - inspira facilmente outros grupos de pessoas com raiva a começarem uma luta semelhante, empoderadas com a ideia de que se pode ganhar. Isso por si só pode desencadear reações em cadeia. Uma explosão nuclear não é causada pela fissão de um átomo, mas pelo impacto do primeiro átomo que se divide, fazendo vários outros átomos perto dele se dividirem, o que, por sua vez, faz mais átomos se dividirem. O aumento exponencial de átomos em divisão, e sua energia combinada, é a bomba. É assim que a Primeira Guerra Mundial começou e, ironicamente como a Segunda Guerra Mundial terminou.

Um exemplo de como Brexit poderia levar a uma guerra nuclear poderia ser assim:

O Brexit do Reino Unido faz com que a Itália ou a França façam um referendo similar. Le Pen ganha a eleição na França. A Europa tem agora uma União fraturada. A UE, com todas as suas muitas falhas terríveis, impede uma guerra na Europa há mais tempo do que nunca. A UE é também uma força importante na supressão das ambições militares de Putin. As sanções europeias sobre a Rússia realmente atingiram sua economia e ajudaram a moderar os ataques da Rússia sobre a Ucrânia (existe um motivo para que os caras maus sempre queiram uma União Europeia mais fraca). Trump ganha nos EUA. Trump isola os EUA, o que enfraquece a OTAN. Ele já disse que não iria honrar automaticamente compromissos da OTAN em face de um ataque da Rússia sobre o Báltico.

Com uma UE fragmentada e a Aliança do Atlântico Norte enfraquecida, Putin, enfrentando uma crise econômica e social grave na Rússia, precisa de outra distração externa em torno da qual reunir seu povo. Ele financia ativistas de extrema direita anti-Europa na Letônia, o que, em seguida, cria uma razão para um levante dos letões russos no leste do país (a fronteira da UE com a Rússia). A Rússia envia 'forças de paz’ e caminhões de ajuda humanitária à Letônia, como fez na Geórgia e na Ucrânia. Ele anexa a Letônia oriental como fez com o Leste da Ucrânia (a Crimeia tem a mesma população que a Letônia, por sinal).

Uma Europa dividida, com líderes da França, Hungria, Polônia, Eslováquia e outros agora pró-Rússia, anti-UE, e financiados por Putin, ignoram as recomendações de sanções ou de resposta militar. A Aliança é lenta em reagir: Trump não quer que a América se envolva, e uma grande parte da Europa fica indiferente ou bloqueia qualquer ação. A Rússia, não vendo nenhuma resistência real para as suas ações, avança para a Letônia e, em seguida, para o Leste da Estônia e da Lituânia. Os Estados Bálticos declaram guerra à Rússia e começam a retaliar, uma vez que já foram invadidos e por isso não têm escolha. Metade dos países da Europa está com eles, alguns países mantêm-se neutros e alguns ficam do lado da Rússia. Onde é que a Turquia entra nesta? Como o Estado Islâmico agiria com uma uma nova guerra na Europa? Quem usaria uma arma nuclear primeiro?

Este é apenas um cenário de assassinato do arquiduque. O número de possíveis cenários é infinito devido à grande complexidade das diversas partes envolvidas. E, claro, muitos deles não levariam a nada. Mas de acordo com a História estamos nas vésperas de outro período de destruição e, com base na perspectiva histórica, todos os sinais são de que estamos entrando em um.

Acontecerá de forma que não podemos prever, e vai ficar fora de controle tão rápido que as pessoas não serão capazes de fazer parar. Os historiadores olharão para trás e entenderão tudo e perguntarão como todos nós pudemos ter sido tão ingênuos. Como eu pude me sentar em um agradável café em Londres e escrever isso, sem querer fugir. Como as pessoas puderam ler isso e fazer comentários sarcásticos e desdenhosos sobre como os pró-Remain deveriam parar de se lamuriar, e como não devemos culpar o Brexit por tudo. Outros vão ler isto e zombar de mim por dizer que os EUA estão em grande forma, que Trump é um possível futuro Hitler (e sim, a Lei de Godwin. Mas a minha comparação é entre líderes narcisistas e carismáticos insuflando as chamas do ódio até que as coisas entrem em uma espiral fora de controle). É fácil tirar conclusões precipitadas que se opõem a previsões pessimistas com base no peso da história e da aprendizagem. Trump ganhou contra os outros republicanos em debates por contrariar as suas propostas, chamando-lhes nomes feios e desqualificando-os. É um caminho fácil, mas errado.

Ignorar e ridicularizar os especialistas, como as pessoas estão fazendo em relação ao Brexit e à campanha de Trump não é diferente de ignorar um médico que diz que é para parar de fumar e descobrir que tem um câncer incurável depois que já é tarde. Uma pequena coisa leva a uma destruição irreversível que poderia ter sido evitada se você tivesse escutado e pensado um pouco. Mas as pessoas fumam, e as pessoas morrem por causa de cigarro. O ser humano é assim.

Então, eu acho que é tudo inevitável. Eu não sei o que vai acontecer, mas estamos entrando em uma fase ruim. E vai ser desagradável para aqueles que viverem nela, talvez até mesmo piore até ser infernal além da imaginação. Os seres humanos vão chegar ao outro lado, se recuperar e seguir em frente. A raça humana vai ficar bem, mudar, talvez para melhor. Mas para aqueles que estiverem no olho do furacão - para os milhares de professores turcos sumariamente demitidos, para os jornalistas turcos e advogados presos, para os dissidentes russos nas gulags, para as pessoas feridas nos hospitais franceses após os ataques terroristas, para aqueles que ainda serão vítimas, esta será a sua batalha de Somme.

O que podemos fazer? Bem, mais uma vez, olhando para trás, provavelmente não muito. Os intelectuais liberais estão sempre em minoria. Veja a confusão que aconteceu no Twitter de Clay Shirky a esta altura. As pessoas que encaram sociedades abertas, ser bom para outras pessoas, não ser racista e não promover guerras como um maneira melhor de se viver, geralmente acabam por perder essas lutas. Elas não jogam sujo. Elas são terríveis em apelar à população. São menos violentas, por isso acabam em prisões, campos de concentração e sepulturas. Precisamos tomar cuidado para não nos dividir (ver: Partido Trabalhista), precisamos evitar ficarmos perdidos nas discussões entre fatos e lógica e rebater as mensagens populistas de paixão e raiva com nossas próprias mensagens. Precisamos entender e usar as mídias sociais. Precisamos ensejar um medo diferente. O medo de uma nova guerra mundial quase impediu uma Segunda Guerra Mundial, mas não conseguiu. Temos de evitar as nossas próprias bolhas. Apoiadores de Trump e Putin não leem o Guardian, então escrever nele vai apenas satisfazer aos nossos amigos. Precisamos encontrar uma forma de criar pontes entre nossos grupos fechados e outros grupos fechados, tentar penetrar nas divisões sociais cada vez mais amplas.

(Talvez eu só esteja escrevendo isso para que possa ser lembrado pela História como uma das pessoas que perceberam as coisas antes de acontecerem.)

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Respondi a alguns dos comentários ao texto aqui.

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