Finalista da Mars One Explica o que Há de Podre no Projeto

Sem dinheiro, sem um processo, sem explicação: uma revelação de dentro expõe um esquema falido.

Hermano Freitas
7 min readMar 18, 2015

De Elmo Keep

Quando Joseph se inscreveu para a Mars One — badalada missão só de ida para colonizar o planeta vermelho capitaneada por uma entidade holandesa sem fins lucrativos — ele não esperava muito dela. Outrora pesquisador da NASA, ele disse nunca ter levado sua inscrição muito a sério. Ele estava mais colocando seu nome na roda por curiosidade, com a esperança de gerar mais publicidade para a ciência espacial.

Mas então Joseph — que na verdade chama-se Dr. Joseph Roche, professor-assistente da Escola de Educação da Universidade de Trinity em Dublin, Ph.D. em física e astrofísica — acabou indo parar em uma lista de 100 candidatos finalistas, todos dispostos a embarcar na jornada hipotética. E foi aí que ele começou a me contar os sérios problemas que via na Mars One.

Foi difícil para ele quebrar o sigilo, mas se viu obrigado a falar pela cobertura noticiosa acrítica. Muitas presunções básicas sobre o projeto seguem sem ser questionadas. Mais notoriamente, muitos meios de comunicação continuam a noticiar que a Mars One recebeu as candidaturas de 200.000 pessoas dispostas a morrer de muito boa vontade em outro planeta - quando o número na verdade foi de 2.761.

Como Roche observou o processo a partir de dentro, suas preocupações aumentaram. A maior delas: que alguns dos principais candidatos à missão tinham pago para isso, sendo então incentivados a "doar" quaisquer recursos que conseguissem com aparições para a Mars One — o que lhe pareceu muito estranho para um projeto que precisa de bilhões de dólares para chegar ao seu objetivo.

"Quando você se integra à 'Mars One Community', o que acontece automaticamente se você se inscreveu como candidato, eles começam a distribuir pontos", Roche explicou em um e-mail. "Você ganha pontos por cada fase do processo de seleção (mas somente um número arbitrário de pontos, nada a ver com um ranking), e, em seguida, a única maneira de conseguir mais pontos é comprar mercadorias da Mars One ou doar dinheiro para eles ".

Dr. Joseph Roche

"Os membros da comunidade" podem obter pontos através da compra de produtos como camisetas, moletons e cartazes, bem como através de presentes e doações: o grupo pede também investimento de seus apoiadores. Outros foram estimulados a ajudar o grupo a obter ganhos financeiros com entrevistas que sejam do interesse da mídia. Em fevereiro, os finalistas receberam uma lista de "dicas e truques" para lidar com os pedidos da imprensa, que incluíam o seguinte: "Se você receber oferta de pagamento por uma entrevista, sinta-se à vontade para aceitá-la. Nós gentilmente pedimos que você doe 75% do lucro à Mars One".

O resultado, diz Roche, é que os melhores candidatos - incluindo os integrantes de uma lista de “10 mais bem posicionados” publicada no mês passado pelo The Guardian - são, na verdade, simplesmente as pessoas que angariaram mais dinheiro para a Mars One. Um porta-voz confirmou por e-mail que as posições foram "baseadas nos pontos que o apoiador de nossa comunidade pode ganhar", mas disse que "este número de pontos não está relacionado com o nosso processo de seleção".

Como Roche também me disse, este processo de seleção secreto é irremediavelmente, e perigosamente, problemático.

“Eu nunca conheci ninguém da Mars One pessoalmente”, ele diz. “Inicialmente eles disseram que haveria entrevistas pessoais… que iríamos viajar para sermos entrevistados, que seríamos testados por diversos dias e, no meu entendimento, aquilo soava pelo menos como algo que se aproximava de um legítimo processo de seleção para um astronauta.

“Mas então eles nos fizeram assinar um acordo para não divulgar se nós tínhamos interesse em sermos entrevistados, então tudo de uma forma ou de outra mudou de uma entrevista presencial de diversos dias para uma conversa de 10 minutos por Skype.”

O processo de seleção da Mars One até o momento exigiu dos candidatos o preenchimento de um questionário, a produção de um vídeo para o site do projeto e um exame médico que cada candidato poderia fazer com seu médico de confiança (e que ficava a cargo do mesmo arranjar). Roche disse que então teve uma breve conversa por Skype com o diretor médico da Mars One, Norbert Kraft, durante a qual ele foi inquirido com as mesmas questões sobre livros a respeito de Marte e a missão que Mars One colocou a todos os concorrentes. Nenhum processo psicológico rigoroso ou de psicotécnico foi colocado. Os candidatos tiveram um mês para decorar e escrever todo o material antes da entrevista.

Os métodos de seleção da Mars One estão muito abaixo do que a NASA exige dos astronautas que integram a corporação — isto para não falar do caso de qualquer um que treine para ser comandante de missão, o sujeito que teoricamente iria pilotar a aeronave até Marte. Comandantes da NASA precisam ter pelo menos 1.000 horas de voo catalogadas para sequer serem considerados como candidatos em treinamento para um voo espacial.

Os candidatos ouviam que não tinham permissão para gravar a entrevista nem fazer anotações. Hoje, diz Roche, ele ainda não teve nenhuma conversa em pessoa com ninguém que represente a Mars One, e ele tampouco sabe de algum candidato que alguma vez tenha sido entrevistado em pessoa sobre suas condições para ser enviado, para sempre, em uma missão ao espaço sideral.

“Isto significa que toda a informação que eles reuniram sobre mim é um vídeo cagado que eu fiz, um formulário de inscrição que eu preenchi basicamente com frases monossilábicas… e finalmente uma entrevista de 10 minutos de Skype”, diz Roche. “Isto simplesmente não é informação suficiente para formar ideia sobre alguém seja para o que for.”

uitos outros problemas com o projeto foram discorridos em profundidade na reportagem que escrevi em novembro para a Matter. Quase todos eles — como o pequeno número de concorrentes — seguem a ser ignorados pela mídia.

Mas alguns pontos estão emergindo agora. Há relatos de que o contrato com a produtora de TV Endemol — que a Mars One alegou que poderia trazer US$ 6 bilhões em receita— não está mais vigorando e que as duas empresas romperam. E mês passado o prêmio Nobel e teórico da Física Gerard ’t Hooft — anteriormente listado como um “consultor” do projeto — colocou como uma previsão realista de tempo para uma missão tripulada a Marte o prazo de 100 anos a partir de hoje, não 10.

A organização não respondeu aos nossos insistentes pedidos para comentar.

Portanto, estes são os fatos na forma como os entendemos: a Mars One quase não tem dinheiro. A Mars One não tem contratos com fornecedores privados de equipamentos aeroespaciais que estejam produzindo a tecnologia das futuras missões no espaço. A Mars One não tem parceria com produtora de TV. A Mars One não tem parcerias publicamente conhecidas de investimentos com nenhuma grande marca. A Mars One não tem uma estrutura de treinamento onde seus candidatos possam se preparar. Os candidatos da Mars One foram examinados por uma única pessoa em uma conversa de 10 minutos por Skype.

“Meu pior pesadelo sobre esta situação é que as pessoas vão continuar a dar apoio, dinheiro e cobertura midiática, e então chegará o ponto em que tudo vai se esfarelar”, diz Roche. Se, como resultado, “as pessoas perderem a fé na NASA e possivelmente até nos cientistas, então isto é exatamente o extremo oposto do que eu me proponho a fazer. Se eu de alguma maneira for associado a alguma coisa que possa prejudicar a percepção do público sobre a ciência, este é o meu pior pesadelo.”

Ilustrações por Josh Cochran, da reportagem original da Matter sobre a Mars One. Fotografias de Nick Bradshaw (principal) e Ruza Leko; gentilmente cedidas por Joseph Roche.

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