O algoritmo do desemprego

Hermano Freitas
11 min readJun 14, 2022

Como jornalistas criaram o programa que acabaria com suas vagas na Microsoft

Burocracias, abuso laboral, competição e keywords: memórias da criação do programa que pulverizaria as funções de jornalista na gigante de tecnologia

Foi no final de 2013 que tive notícia que haveria uma vaga de tradutor de inglês para o português em tempo integral no MSN Brasil, o antigo comunicador que virou portal de notícias da Microsoft. Tentava desde mais ou menos meados de 2012 ir para aquele veículo, desde que trabalhava no Terra e via o fluxo dos colegas pedindo demissão de uma grande e decadente empresa de tecnologia para a maior de todas.

Entre tantos atrativos, ambas ficavam no mesmo complexo de torres de escritório chamado WTC (de World Trade Center, o mesmo do condomínio das Torres Gêmeas abatidas em 2001), localizado nas imediações da avenida Berrini, em São Paulo, onde, de janeiro a dezembro, era sentido o odor de fezes frescas do lodo do Rio Pinheiros. Uma mudança suave e desejável. A vaga parecia um excelente negócio, especialmente porque surgia depois de um período prolongado de trabalhos estritamente autônomos.

Meu espírito estava tranquilo para deixar o jornalismo por uma vaga híbrida de tradução e edição. Quem melhor do que um jornalista formado que também traduzia para aquele posto? Aqueles que estão familiarizados com o exercício de fazer versões de línguas estrangeiras sabem como é raro uma empresa realizar este serviço com registro na carteira.

Realizei uma bateria de testes rigorosa e depois uma entrevista muito amigável com um conhecido de outros carnavais. Ambos tínhamos integrado o time estreante do G1 em 2006 e a conversa foi como a de velhos amigos. Explicou que meu negócio seria “curadoria de conteúdo” (primeira vez que ouvia a expressão), uma vaga terceirizada, com salário equivalente ao de um “Full Time Employee (FTE)”, mas havia alguns benefícios que eu não teria. Mostrou com a palma da mão o smartphone: aquele celular era uma das coisas às quais eu não teria direito, além de uma camisa da seleção brasileira personalizada com meu nome para a Copa das Copas no Brasil.

Nada demais. Minha carteira de trabalho estaria assinada, minha mulher na época estava grávida e meus problemas financeiros pareciam ter acabado. No papel dizia: “Analista de Comunicação PL” e a oferta salarial era impressionante. Naquele momento ainda não sabia, mas estava com meus ganhos indexados ao dólar e isso refletia minha condição de vínculo a um time internacional da Microsoft, profissionais de comunicação sediados em Londres e que geravam conteúdo para toda a rede de portais do MSN no mundo. Era mesmo um projeto ambicioso e fazer parte disso tinha ares grandiosos, mesmo em um veículo amplamente desconhecido no mercado.

Mas ninguém disse isso quando comecei. Agia-se como se eu fosse parte da equipe brasileira e demorou algumas semanas até que eu entendesse quais eram minhas reais funções e até mesmo quem era meu chefe (e ele não falava português). Neste meio tempo, absorvi atividades que nem as estagiárias queriam, como a moderação de comentários dos leitores.

Foi em uma das reuniões por videochamada semanais cedo da manhã e no truncado inglês britânico que soube: o trabalho braçal que vinha realizando não tinha autorização dos meus verdadeiros chefes, era usurpado para funções que não tinham absolutamente nada a ver com minha razão de ser e estar naquela empresa. Eu deveria traduzir, e apenas traduzir, legendas de galerias para serem veiculadas e gerar métricas de audiência contabilizadas para os resultados globais daquela equipe internacional de conteúdo. E averiguar aqueles números na ferramenta apropriada, que se chamava Omniture. Ponto final.

Moderar os comentários no portal não resultaria nos números que aquela equipe global precisava para justificar sua existência (e a minha). Meu tempo era tomado por burocracias de redação enquanto deveria estar produzindo as traduções para as quais fora contratado.

A seguir um pouco de contexto. Corria o ano de 2014 e o indiano Satya Nadella começava sua gestão na Microsoft depois de anos sob a perdulária era Steve Ballmer. A ordem do dia era cortar custos e, no decorrer daquele ano, seriam ceifados um número como 30 mil empregos na companhia em todo o mundo. Semana após semana, vinham e-mails de despedidas que geralmente variavam o tom. Chorosos, irônicos, alguns muito simpáticos e que denotavam alegria verdadeira de não fazer mais parte da empresa. (Justiça seja feita: alguns dos demitidos recebiam há anos salários para produzirem textos em seus blogs e vídeos como influenciadores nos seus canais pessoais no Youtube nos seus horários de trabalho.)

A situação daquele núcleo de comunicação parecia especialmente dramática porque eram profissionais previamente roubados das maiores redações da Inglaterra, como os jornais The Guardian e Telegraph, os salários deveriam ser fabulosos e um corte de gastos seguramente deveria atingir aquela redação montada poucos anos antes, por sinal acomodada em uma das capitais mais caras do mundo. O ambiente, portanto, não era de tranquilidade.

Além disso, havia uma característica que eu ainda não conhecia nas empresas sediadas nos Estados Unidos. Semestralmente produzem um balanço de resultados a partir do qual é definida estratégia, investimentos e equipes para o futuro. Com uma cultura de contratações sem vínculos empregatícios os times tendem a rotacionar muito. Resumindo: nas proximidades de dezembro e lá pela metade de julho ninguém que trabalhava ali sabia ao certo se teria emprego ou se iria para a rua.

Tudo isso gerava pressão por resultados nas margens do canibalismo entre colegas dentro da gigante da tecnologia. Ao mesmo tempo em que havia o discurso humanista, no qual as palavras do discurso garantiam que o mais importante era a família e um bom equilíbrio entre vida pessoal e trabalho, vivia-se com uma certeza: qualquer planilha com números pouco marcantes poderia ser a diferença entre ter o dinheiro para o aluguel no mês seguinte e não ter mais. Os efeitos que trabalhar assim têm para a saúde mental não poderiam ser mais óbvios.

Talvez tenha sido por essa época que a redação recebeu a visita de atores caracterizados como os personagens de Jornada nas Estrelas, maquiados com tinta colorida na cara. O teatro era uma ação de recursos humanos para estimular o compliance. Fazendo algo como um jogral, alertavam para a necessidade de seguir as regras da firma que procuravam evitar a corrupção das autoridades brasileiras e para a possibilidade de ser “ejetado da nave” na eventualidade de descumpri-las. Era uma clara ameaça velada de demissão, caso não tenha ficado claro.

Eu sabia que não eram boas traduções que renderiam os números que eu precisava para continuar empregado. Portanto, desenvolvi uma técnica para colocar o maior número possível de galerias no ar dentro do menor tempo possível. Cortava e resumia o texto ao mínimo e dava o comando “publish”. Lógico, não era uma tradução impecável e manter o texto na íntegra o que garantia o resultado da métrica de audiência, mas as fotos. Avaliar o profissional de tradução por métricas de audiência era ridículo, mas tais métricas de audiência eram variáveis empregadas para decidir se os resultados eram bons e se valeria a pena continuar me pagando.

Saber disso podia ser encarado como uma atitude transparente do empregador. Pode também ser uma sádica maneira de manter o “colaborador” em pânico e produzindo tanto quanto pode. E era exatamente o que acontecia.

Neste meio tempo, o clima entre os colegas do time brasileiro não ia bem. Sobrecarregados, eles próprios, pela produção no limite e por pressões reais ou percebidas, não entendiam minhas atribuições e julgavam que eu estaria vivendo uma vida mais mansa que a deles. Só muito mais tarde seria informado que meu salário era maior que o deles. Não fazia ideia disso, mas aparentemente a maioria estava perfeitamente informada e não poderia ficar muito feliz sabendo do tratamento diferente.

Além de mim, que traduzia para o português, havia nos outros países uma tradutora para quase qualquer outro idioma: alemão, chinês, japonês, francês, italiano, mais tarde russo. A tradutora argentina era minha colega mais próxima e conversávamos diariamente sobre nossas impressões no comunicador interno da empresa. A história era mais ou menos a mesma em todos os países: havia sempre a pretensão de tentar colocar “só mais uma coisinha” entre as atribuições de quem traduzia porque o trabalho era entendido como uma atividade simples, que poderia ser resolvida como um extra.

Me precavi com a garantia de que minha demissão não poderia ser concretizada sem uma anuência do chefe inglês. E foi assim que consegui dormir naquela época.

Passou um ano fiscal e veio a notícia: mesmo com os enormes esforços para se manterem necessários, todos os colegas de Londres receberam seu bilhete de demissão. Previamente havia sido montada uma equipe de produtores de conteúdo em Nova Delhi, capital da pátria de origem do presidente da empresa conhecida por suas soluções econômicas de recursos humanos já amplamente usadas na equipe de desenvolvimento de software. Indianos possuem qualificações extraordinárias e oferecem serviços de excelência mediante um salário muito mais baixo que o de ingleses.

Não havia o que ser considerado. Mais barato era o certo na gestão Nadella.

A verba para manter o time internacional de tradutores foi temporariamente mantida, mas era óbvio que testemunhávamos um lento processo de desintegração por etapas da equipe previamente montada. A sensação era de que caíam pouco a pouco as bases sobre as quais nossos pés estavam apoiados. Continuamos trabalhando já com certa apatia, não havia garantia nenhuma de que um bom desempenho seria recompensado com a segurança do emprego (que dirá um aumento).

Passou mais um ano fiscal e veio o anúncio que não haveria mais orçamento global para pagar os tradutores daquele time de conteúdo. Caberia a cada país decidir o quanto julgava importante ter um tradutor dedicado e tirar do seu próprio orçamento o recurso para mantê-lo. Era a metade do ano de 2015 e comecei a me despedir mentalmente daquele prédio onde trabalhava. Da vista para a ponte Frias, das amenidades da copa, dos restaurantes péssimos do entorno. Chegava cada dia para trabalhar com a impressão que poderia ser o último.

Fui chamado a uma sala com o chefe daquela época, um português que passara os seis meses anteriores estragando a própria saúde ao pernoitar num voo transatlântico entre Lisboa e Guarulhos a cada duas semanas. Sua religiosidade inabalável e educação seca me faziam simpatizar muito com ele. Mais tarde pude ter certeza, era um sentimento recíproco.

Ele me contou o problema que eu representava. Era o terceirizado com o maior salário e não haveria a menor possibilidade de me manter fazendo aquilo que fizera até ali.

Esperou que eu digerisse a informação por uns instantes, continuou.

Seria necessário que eu fosse incorporado à edição jornalística, entre outras funções que não me interessavam, mas que eu precisaria agregar à rotina para continuar. Ele me manteria porque acreditava que eu poderia render.

Não era a pior notícia que poderia ouvir. Eu continuaria empregado e minha família não perderia os planos de saúde e nem meu salário.

Passei a editar alguns dos chamados verticais de conteúdo de importância menor, como a editoria de Carros. Depois de vários anos a memória fica turvada, mas deve ter sido mais ou menos nesta época que começaram a ser inseridas na rotina atividades descoladas da comunicação. Poderia ser SEO (mecanismos de otimização nas plataformas de busca), redes sociais, técnicas de growth (aumento da audiência). Entre estas atividades surgiu uma estranha atribuição de cadastrar “Keywords” relativas ao trabalho de edição em uma planilha de Excell.

Eram palavras como “animais”, “icônico”, “Política”, “Lula”, “Corinthians”, que acabariam associadas a determinado tipo de conteúdo. O processo todo não era explicado em sua íntegra. Sempre tive a impressão, aliás, de que mesmo quem trabalhava com a criação dos programas não tinha uma compreensão abrangente das coisas que desenvolviam. Era comum recorrer aos Program Managers (PM) para receber respostas como “vai tentando colocar que uma hora vai” a respeito de bugs e outros problemas técnicos de publicação. No limite, os casos eram repassados para uma equipe na Índia mediante o preenchimento de formulários online e uma espera de no mínimo 24 horas.

Alguns tinham a sorte de conseguir coisa melhor e desistiam no caminho. Suas funções eram absorvidas pelos remanescentes sem que nenhuma nova contratação fosse efetivada. Os protestos contra a sobrecarga de trabalho eram respondidos com uma frase vaga a respeito de priorização de funções. Poucos eram os que ousavam entregar menos e os erros se tornavam cada vez mais comuns. Ao mesmo tempo em que desinvestia na comunicação, a Microsoft comprou a rede social Linkedin por US$ 26 bilhões em junho de 2016.

Neste ano tive três bronquites que evoluíram para pneumonias. O stress rebaixou a imunidade e resultou ainda numa perda parcial da visão do olho direito que nunca seria satisfatoriamente explicada pelos médicos. Além do emprego no MSN eu ainda realizava frilas fora do horário para complementar a renda.

Havia reuniões em que o clima organizacional era investigado. O chefe procurava aferir o que cada um via como sentido do seu trabalho (quem abria a boca mencionava o salário como única ferramenta motivacional, para frustração do líder). Houve uma tarde em que comunicou que o regime de contratação deixaria de ser o da terceirização da força de trabalho, a Microsoft passaria a pagar por toda a edição de conteúdo do MSN. Em outras palavras, nós terceirizados deixaríamos de ter acesso às dependências da Microsoft para sermos deportados para outra empresa na qual seríamos acomodados para continuar fazendo exatamente a mesma coisa.

Veio uma série de dúvidas: com as demissões efetivadas as equipes seguiriam as mesmas, qual era a garantia de recontratação total de todos após a travessia para o outro lado? Mais uma vez a humanidade do chefe português se faria notar pela escolha de uma empresa que garantiria a contratação de todos após o processo de outsource. Era uma agência moderninha, alguns quilômetros mais na direção Leste da Marginal Pinheiros, um galpão industrial recauchutado para ser um local de trabalho que atendesse aos padrões de exigência de publicitários hipsters. Ao contrário da Berrini, o estacionamento seria oferecido de graça.

Fomos apresentados aos novos colegas. O trabalho, novamente presencial, parecia dentro da mais perfeita ordem. O jogo continuou aquele mesmo por exatos 20 dias. Quando cheguei para trabalhar em uma sexta-feira a gestora me convocou para uma conversa dentro da sala. Cerca de três anos depois das primeiras ameaças, eu estava, finalmente, na rua.

Meu laptop funcional foi confiscado enquanto estava na sala assinando os papeis da demissão. A intenção de que eu não pudesse reunir provas não poderia ser mais clara com o recolhimento sub-reptício de minha ferramenta de trabalho sem a possibilidade sequer de me despedir dos colegas de fora do país. Os colegas presentes reagiram à minha demissão paralisados pelo susto. Me sentia aliviado. “Finalmente acabou”, falei para mim mesmo, alto. Além de mim, outro colega especialista em marketing acabou demitido no mesmo dia. Ao mesmo tempo em que era demitido, acabava meu casamento depois de 13 anos.

Por algum motivo que nunca soube explicar muito bem, nunca levaria adiante a intenção de processar a empresa terceirizadora e a Microsoft por responsabilidade solidária. Havia inúmeras provas de assédio moral recolhidas nos quatro anos e meio de serviços. Talvez pela reforma trabalhista aprovada naqueles anos, talvez porque seria meu segundo processo na Justiça do Trabalho, cheguei a pedir a um colega para testemunhar a meu favor, mas não me animei a ingressar com a ação. Hoje os prazos prescreveram e não poderia fazer mais nada.

Fiz questão de não ficar por dentro do que acontecia na equipe de edição do MSN mas, mais ou menos tarde, o destino de todos os colegas acabaria sendo o mesmo que o meu. Eu iniciei um tratamento para a depressão e demoraria quase 3 anos para ter novamente um emprego formal.

A data que a companhia escolheu para dar cabo do resto de todo o time de edição de notícias foi meados de 2020, em plena pandemia. Foi colocado em funcionamento um sistema inteiramente robotizado de edição por algoritmo, sem intervenção humana, com base naquelas Keywords que ajudamos a cadastrar. O MSN é até hoje a página inicial do navegador Edge e deve a isso ter uma das páginas iniciais com mais acessos de usuários de toda a internet. Depois de produzir seu software de edição, a empresa mais rica do mundo não gastou nem mais um centavo em salários para jornalistas.

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