Você provavelmente não lerá este artigo sobre a Síria

Hermano Freitas
4 min readMar 21, 2015
Mulheres feridas chegam a um hospital de campo depois de um ataque aéreo a suas casas na cidade de Azaz, na periferia de Alepo, Síria. [AP / Khalil Hamra, Arquivo, 15 de agosto de 2012]

Há algo nestes olhos. Algo mais do que a frustração que muitas vezes se vê nos rostos inocentes de vítimas das guerras que não são suas. É algo que assombra. Algo que atinge de maneira mais poderosa não na mente, mas em algum lugar mais prosaico. Nas entranhas. Nos ossos.

Sua expressão parece fazer uma cobrança. Pergunta a você: você se importa? Você está me vendo?

Quando vimos esta imagem pareceu não haver outra mais capaz de aparecer na nossa home no dia 15 de março, data em que a Síria entrou no seu quinto ano de miséria e pandemônio. Seu quinto ano de carnificina.

Diversos grupos de direitos humanos, e muitos sírios, tinham uma acusação terrível a fazer naquele dia. O mundo, eles disseram, falhou com o país e seu povo. O mundo não estava nem aí.

As grandes reviravoltas roubam as manchetes. E as pessoas para as quais nós deveríamos prestar atenção acabam virando meros coadjuvantes, pequenas peças em uma narrativa dominada de maneira errada e injusta pelo grotesco.

Às vezes o próprio jornalismo parece uma luta para fazer com que as pessoas se importem.

E muitas vezes, talvez com mais frequência, é uma luta para fazer com que você mesmo se importe. Todos os dias a imprensa trata de histórias de morte, sofrimento e desespero. Mais do que deveriam, estas histórias parecem só um trabalho, colocadas ali para serem processadas. Um salário para ganhar no fim do mês.

Mas nós temos um dever. Porque são as histórias de outras pessoas.

E elas merecem ser conhecidas.

Nesta efeméride, publicamos muito conteúdo. Haviam comoventes documentários, polêmicas fortes, pinturas sírias, infográficos, análises, entrevistas, artigos e notícias. Teve streaming de TV. Tentamos levar nosso público até as vidas de quem estava no meio daquilo tudo.

E tudo isso teve como imagem principal a mulher sangrando, aquele olhar em uma foto enorme dominando a tela.

Mas o número de pessoas que visitaram nosso site naquele dia foi muito menor que o esperado. Enquanto observávamos os números, analisávamos nossa audiência, esta terrível acusação de apatia parecia se justificar.

Há variáveis, claro. Efemérides não tendem a estimular a imaginação, algumas pessoas podem preferir outros veículos de notícias para acompanhar a Síria e, talvez, nosso trabalho não tenha sido tão bom assim.

Além disso, há o desgaste. Os últimos anos têm sido muito duros para todo o mundo. Síria, Iraque, Nigéria, Líbia, República Centro-Africana, Sudão do Sul, Ucrânia, Somália e muito mais. As histórias sombrias são regra.

Eu nunca ouvi tantos jornalistas dizerem que o trabalho está lhes deixando para baixo, nem tantas pessoas que acompanham notícia dizerem que não aguentam mais fazer isso. Ser uma testemunha de tudo isso é extenuante.

Confrontando nossa indiferença

Vimos uma estagnação na audiência para as nossas histórias sobre o conflito da Síria desde 2012, com picos intermitentes quando há manchetes bombásticas - Assad diz algo diferente, aparece uma chance de o Ocidente intervir com mísseis.

Recentemente, porém, houve picos ocasionais, eles aparecem principalmente relacionados ao Estado Islâmico. A tomada de Fallujah, a queda de Mosul, as decapitações abomináveis e a vandalização dos tesouros arqueológicos a marretadas.

As grandes reviravoltas roubam as manchetes. E as pessoas para as quais nós deveríamos prestar atenção acabam virando meros coadjuvantes, pequenas peças em uma narrativa dominada de maneira errada e injusta pelo grotesco.

Nós descobrimos que as histórias sobre a rotina sufocante e as dificuldades de todos os dias da guerra não vão muito bem. As histórias sobre os quase quatro milhões de sírios obrigados a fugir do seu país, tampouco.

Quando nós escrevemos no Twitter a acusação de que o mundo não se importava, muitas pessoas retuitaram. Mas a maioria não clicou no link para ler nossas histórias. Talvez elas queriam mostrar aos outros que se importavam. Talvez elas acreditassem que as pessoas deviam se preocupar. Mas elas não tiveram a preocupação de ler o que nós tínhamos escrito.

É uma pena.

Porque esta era a oportunidade de fazer um balanço. De dar apoio. De refletir sobre o fato de que mais de 220 mil pessoas foram mortas e metade da população do país foi expulsa de casa. De perguntar ao povo sírio o que precisa que façamos. De pressionar governos a levá-los em consideração.

Nossa indiferença é uma coisa sobre a qual precisamos pensar e discutir. Como jornalistas, nós devemos questionar nossa atuação. Como pessoas, nossa humanidade. Porque nós podemos fazer melhor.

E aquela mulher na fotografia deveria saber que nós a vemos.

Escrito por Barry Malone, online editor da Al Jazeera.

Twitter: @malonebarry

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